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sábado, fevereiro 28, 2004

Sonhei com 

Sonhei sem parar durante horas. Do entulho, lembro-me apenas disto:

Já não me vês.
Vem buscar-me buscar-me buscar-me.



quarta-feira, fevereiro 25, 2004

22 

Aprendi a amar pela madrugada
no frio denso, no frio denso
com os dentes fechados a morder o lenço
sem poder calcar a porta de entrada
aprendi a matar bem mais do que penso
aprendi a matar bem mais do que penso.



Sérgio Godinho (in Pré-Histórias, "Aprendi a Amar")

segunda-feira, fevereiro 23, 2004

22 

Não sei como dizer-te que a minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando (...)
estremeces como um pensamento chegado. (...)
— eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.
 
Quando as folhas da melancolia arrefecem (...)
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
— E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio. (...)
— não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.
 
Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me falta (...) qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é (...) o deus, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.



Herberto Helder (in A Colher na Boca, excerto do poema "Tríptico")


segunda-feira, fevereiro 16, 2004

Unicórnios para a Minha Princesa 

Ela conta-me segredos risíveis e encanta-me com histórias estapafúrdias. Espera sempre por mim e sabe que estou sempre a vê-la. Sempre que lhe faço surpresas, finge que não está surpreendida e diz qualquer coisa dócil e sem importância para disfarçar. Quando era ainda muito pequena o avô, meu pai, ensinou-a a dar beijos com um pequenino cordeiro de loiça. Com alegria ela espera que um dia o cordeiro retribua o beijo. Parte-me o coração vê-la triste. Hei-de vê-la assim muitas vezes. A bondade e a sombra moram já nos olhos escuros da minha princesa. Ainda que mate a minha paz, sei que farei tudo por ela. Digo-lhe que os burros estão em perigo e que os unicórnios não existem. Ela acredita e nunca mais esquece.

sexta-feira, fevereiro 13, 2004

São Valentim II 

«Terra da nossa promissão, da exígua promissão de sete sementes, o Alentejo é na verdade o máximo e o mínimo a que podemos aspirar: o descampado dum sonho infinito. (...) Há quem se canse de percorrer as estradas intermináveis e lisas desse latifúndio sem relevos. Há quem adormeça de tédio a olhar a uniformidade da sua paisagem (...) aflige-os a constante do Sul, que obriga todo o circunstancial a ocupar o seu lugar de zero perante o infinito. Perdidos e sós no grande descampado, sentem-se desamparados e vulneráveis. (...) Não há outro português mais rico de pão, agasalhado por tão quente manta de céu e dono de tantos palmos de sepultura.» (Miguel Torga, in PORTUGAL, "Alentejo")

São Valentim I 

«a província gosta de visitar Lisboa e Lisboa gosta de visitar a província. Embora regressem cada qual a sua casa aborrecidas e renitentes, encontram-se momentaneamente na beleza duma e na pureza da outra. (...) A Pátria é tanto o lodo de Alfama, o poleiro de S. Bento e a miséria mental do Chiado, como a lisura de Trás-os-Montes e a ênfase do Alentejo. Na simplicidade rústica de Piódão, o Rossio liberta-se das suas pombas turísticas, que afinal não voam e só servem para sujar o mosaico, do seu chafariz decorativo, fonte inútil que lhe não mata a sede, dos seus cafés ruidosos, onde não consegue esquecer as misérias; na Avenida da Liberdade, o Piódão despe o surrão, escapa-se da missa dominical, e chega a sentir-se janota (...) Talvez mesmo que lá no fundo, no fundo da desavença, não haja senão um sentimento de culpa comum, a mesma mágoa inconfessada duma desgraça que abrangeu toda a nação, mas que tem na capital o seu estigma indelével. (...) Lisboa é essa flor em que o destino nos transformou; o Tejo, o rio onde nos perdemos a contemplar a própria imagem» (Miguel Torga, in PORTUGAL, "Lisboa")

quinta-feira, fevereiro 12, 2004

Momento Zen 

Desperto na noite / pelo som da água / do jarro a gelar.

(Matsuo Bashô)


segunda-feira, fevereiro 09, 2004

Fungo-Gágá da Bicharada - O Ornitorrinco Copo-de-Leite 

Segundo fontes de incontestada fiabilidade, há já alguns meses que desabrochava um perfumado romance entre o Ornitorrinco Copo-de-Leite e a nossa Hiena Caprichosa. Agora temos a certeza - ninguém fica indiferente a este idílio que perante os nossos olhos se vai desenrolando a uma velocidade alucinante. Tão limpinhos e organizados, tão poupadinhos, finalmente cederam e deixaram-se arrebatar num misto de encantamento e estupefacção. Foram curados pelo Amor! É simplesmente repulsivo, esta bonita história de amor dá-lhes para dizer piadinhas parvas todo o dia. TODO O DIA com este humor de merda insuportável que para os pombinhos deve actuar com certeza como um poderoso afrodisíaco. Primeiro um, depois outro, vice-versa, versa-vice, até à agonia, até ao mais desalentado desejo de morte. Eis o cenário são-valentiniano: mesquinhos e intrometidos, em momentos de pura felicidade viram os focinhos para todos os lados para que "a malta" se porte bem, enquanto partilham com os pobres de espírito o estonteante humor-de-gestor com que foram bafejados na universidade e que pensam ser muito inteligente (Os Monty Python Mexeram no Meu Queijo Mofento e Infecto). Completam-se de tal maneira que o Ornitorrinco Copo-de-Leite, normalmente muito púdico e circunspecto, fica suficientemente à vontade para dizer palavrões quando algo corre mal, já para não falar das fascinantes histórias que conta da sua juventude rebelde em que... até tinha uma mota! Nunca se calam, riem alto, arrulham, olham-se e quase se tocam em determinadas situações em que poderia passar despercebido a obscenidade do seu desejo, secretamente desejam viver juntos e assumir de uma vez por todas que gostam é de meninos e que as namoradas são pesos mortos nas suas superficiais vidas. UM TRILHO DE SANGUE é o que queremos neste departamento, não os queremos ouvir, aluguem um quarto numa pensão qualquer e arrumem a questão, não se olhem com esse subentendido entendimento que têm sobre a arrogância com que tratam os demais, fiquem tristes os dois, os sempre certos, os autoritários cobardolas reaccionários, os bafientos e pútridos heróis da presunção. Adoram-se e odeiam ter de competir no escritório. Se é verdade que não reparam na gravata um do outro, ou se o pullover sem mangas do outro tem borbotos, também é verdade que secretamente querem para o outro a mais sórdida miséria. O Amor passa. Haverão outros amantes.

segunda-feira, fevereiro 02, 2004

Caos do Sodré 

Numa qualquer noite estrelada entra-se num bar com nome de estado norte-americano onde dança uma puta de nome bíblico que se deixa fotografar enquanto mostra o nome do chulo tatuado na barriga escanzelada, fuma-se erva e bebe-se vinho com a puta bíblica e um nortenho bem parecido que viveu 12 anos nos Estados Unidos a ganhar bem e que por baixo da camisa deixa entrever o pijama, enquanto à porta uma pomba angelical possuída canta debaixo de chuva e só não morre porque as palavras são ardentes e caem sobre nós como fogo sobre os infiéis, passam mulheres a ressacar com mais tiques do que carne no corpo, homens esquálidos demasiado bêbados, urinados, ladrões, traficantes, mendigos, desembarcadiços em busca de álcool e de submundo em forma de bares com nomes de longínquas cidades costeiras. Deuses e demónios andam à solta neste despejo, somos mal-vindos e bem-vindos a este mundo concertado num romântico e total desconcerto.






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