<$BlogRSDUrl$>

quarta-feira, setembro 22, 2004

Sonhei que 

Sonhei que pegava fogo à casa onde vivi a maior parte da minha vida com os meus pais e o meu irmão. Queimava tudo, pacientemente, de divisão em divisão. Quando cheguei ao que tinha sido o meu quarto, espantou-me que estivesse agora quase inteiramente ocupado pelos brinquedos das minhas sobrinhas. De tudo o que podia ter salvo das chamas, guardei no bolso apenas a escova cor-de-salmão com que costumava pentear a minha girafa de pano, a criatura mais malcriada de todas as que habitavam o meu quarto, e portanto a que mais vezes era sujeita à "máquina de bater".


Quando acordei, o fogo sonhado lembrou-me o incêndio real que há uns anos dizimou todas as recordações de infância e da adolescência da Maria.
A "máquina de bater" lembrou-me a Tânia, que teve há dias o segundo filho e pela ocasião e sob o efeito de potentes drogas me telefonou a dizer que nunca se esquecia de mim. Passámos muito tempo juntas, desde os 4 até quase aos 20 anos. E era ela a maior responsável pelas palavras que saíam da boca da ordinária girafa.

segunda-feira, setembro 20, 2004

A Raposa e os Outros 



Do Progresso Civilizacional (em La Plage)
Há tradições que são ultrapassadas pelo tempo. Não existe por isso qualquer fundamentação para a insistência em valores que não se coadunam à vivência presente dos homens. Hoje sabemos que os animais não são objectos. É inquestionável que a violência exercida sobre eles é uma correia de sofrimento: físico e, em certos casos, emocional. Por isso são determinantes votações como as de ontem na Câmara dos Comuns, em Londres, que ditou em maioria a proibição da caça à raposa. E essa não é uma questão de moral, palavra que em si mesmo tem um quê de repugnante. Porque enquanto a direita conservadora argumenta que há uma imposição de valores "ao rural" - esse inexistente reduto simbólico que é tão propício ao "viver habitualmente" do reaccionarismo, como Salazar bem o sabia -, outros compreendem já que nunca conseguiremos uma sociedade mais ética e solidária enquanto persistirem eventos colectivos que elogiam a força bruta sobre o mais fraco, o sangue pelo sangue, a violência gratuita, o espectáculo público da degradação. Não é só a dignidade dos animais que está em causa. É a nossa, também.





quinta-feira, setembro 16, 2004

Mão Morta nas Carmelitas 

Braga, cidade dos arcebispos, viu em tempos nascer por ironia do destino uma banda musical cuja postura viria desafiar os mais enraízados valores morais deste nosso cinzento mundo luso.

Ontem, numa inesperada cerimónia organizada na Igreja das Carmelitas em Lisboa, os Mão Morta comunicaram ao país e ao mundo a sua decisiva conversão à Ordem da Santa Cruz de Coimbra, fundada por São Teotónio em 1131.

São Teotónio foi o primeiro santo da nação portuguesa a ser canonizado, sendo celebrado hoje pela Igreja como o reformador da vida religiosa em Portugal, era um missionário notável e detentor de uma visão bastante moderna para o seu tempo, e foi conselheiro espiritual do rei Afonso Henriques.

Num crescendo de estupefacção sentimos a perturbante angústia varrer os corações dos que assistiam ao místico comunicado. Para apaziguar a confusão e o pânico foram entregues saquinhos contendo enxofre e bolinhos feitos pelas irmãs do Convento de Mafra, saquinhos que fizémos questão de documentar aqui fotograficamente. Adolfo Luxúria Canibal, sempre intenso e já denotando um certo desapego das coisas terrenas, explicou que tudo tinha começado quando o baixista da banda, empolgado com a leitura de Eurico o Presbítero, fez notar o desalento e a vacuidade de e em tudo, e uma vontade imperetrível de continuar a minar o sistema, mas agora através do Amor Universal.

Hipnotizados pela força destas palavras e pela poesia discreta das coisas e das almas, sentimos a estranha força do Amor e em quasi-transe entrelaçámos as mãos, em uníssono rumando ao âmago da harmonia e da luz. São Teotónio parecia cantar connosco enquanto entoávamos os cânticos "Desmaia, Irmã, Desmaia", "Anjos Marotos", "Maria, Oh Maria", "Shambalah (O Reino da Luz)", "Eu Sou o Anjo do Desespero", "Anjos de Pureza" e "Bófia".


quarta-feira, setembro 15, 2004

Madonna e Lucifer 

Ofereceram-me um bilhete, e o bilhete trouxe-me à memória concretamente o meu estimado pullover verde-alface com decote em bico, e os elásticos pretos no pulso a acompanhar. Lembrei-me de saber de cor "Burning Up", "Borderline", "Over and Over" e tantas outras. Foi assim que fui ver a Madonna ao Pavilhão Atlântico.

Gostei de a ver agora, 20 anos passados desde que a conheci. Também gostei de ter tido a oportunidade de vaiar o Pedro Santanás Lopes num grande recinto. Não é todos os dias. Não gostei dos fãs da Madonna. Na sua maioria, não têm escrúpulos.

O espetáculo em si foi muito conceptual e muito variado (apesar de poder dispensar alguma enjoativa imagética circense), com especial destaque para alguns trabalhos em vídeo muito bons. Continuo a achar que explora pouco a área da dança, que lhe parece interessar tanto desde que foi bolseira de dança na universidade aos 19 anos. Algumas canções foram re-inventadas (afinal nem todas tiveram direito a nova versão), mas não sob essa perspectiva. É algo que apenas se arranha ao de leve nalguns dos vídeos que passaram nos écrãs – a junção dos novos arranjos sonoros a novas perspectivas dentro da dança contemporânea e da fotografia. É um pacote potente mas pouco explorado. O fim do espetáculo é radicalmente abrupto - não há encores nem palavrinhas soltas. Eu passo bem sem os constrangedores encores, mas ficou a impressão de que os planos são cumpridos cirurgicamente ao segundo. Muito sorridente e muito pouco preguiçosa como de costume, ela vinha carregadinha de mensagens de paz, mas até o desejo de paz mundial cabe dentro de um esquema muito profissional e muito controlado, sem grande espaço para a “re-invenção”. Diz-se que a maternidade e a sabedoria dos quase 50 anos a têm vindo a "amolecer". É natural, é muito natural.



quinta-feira, setembro 09, 2004

Enviado a um rapaz em 1997 tentando demonstrar alguma serenidade no núcleo da tempestade e ao mesmo tempo o desespero do meu coração partido  

"A Girl"

The tree has entered my hands,

The sap has ascended my arms,

The tree has grown in my breast -

Downward,

The branches grow out of me, like arms.

Tree you are,

Moss you are,

You are violets with wind above them.

A child - so high - you are,

And all this is folly to the world.

Signed: Ezra Pound


Um Lamento 



Tenho a certeza de que o Paulinho das Feiras, na sua porosa cruzada em defesa da vida e contra o aborto, atentaria sem hesitar contra a minha vida, se por infelicidade me encontrasse no caminho das suas obstinadas corvetas de guerra.






This page is powered by Blogger. Isn't yours?